Meu pai tem esse apelido segundo ele, porque quando ele era pequenininho ficava brincando com uns pedacinhos de madeira e falando: cunga, cunga, cunga. Meu avô escutou e começou a chamá-lo assim, pronto o apelido pegou. Hoje se encontro alguém de lá e quero me identificar é só falar: sou filha de Cunga. Pronto, todos já sabem quem é.
Quando eu digo "lá" me refiro a Altinho, cidade localizada no interior de Pernambuco, perto de Caruaru.
Depois de casados e já com duas filhas, meu pai resolveu tentar a sorte aqui em São Paulo. Segundo ele nos conta aqui era uma fartura só de empregos, ele disse que se saísse de um serviço no caminho para ir embora para casa já arrumava outro. Acredito porque naquela época a cidade estava em pleno desenvolvimento para ser tornar essa imensidão que é hoje.
Logo depois ele voltou para Altinho e trouxe minha mãe, minhas duas irmãs e o que mais deu para trazer, estava decidido todos iriam morar aqui. Logo depois (acredito que um ou dois anos depois) eu nasci, e seis anos depois meu irmão, o filho homem tão sonhado pelo meu pai para fechar a prole.
Então desde sempre ouço meu pai falando coisas sobre o nordeste, o povo nordestino, a vida de lá, as dificuldades, as alegrias. E sempre nos passou seus valores. E eu sempre os indentifiquei como característicos do povo de lá. Muitos deles eu absorvi, outros vieram do convívio e costumes aqui de São Paulo. Era engraçado quando éramos crianças e falávamos alguns nomes que eram comuns em casa e as outras crianças nos olhavam com aquela cara de "o que é isso??", e nós tínhamos que explicar como: muriçoca (pernilongo), pitó (rabo de cavalo), venta (nariz) e por aí vai.
Costumávamos ir passar as férias em Altinho, acho que a primeira vez que eu fui tinha 4 anos. E tudo era novidade.Tudo era muito diferente prá mim. Apesar de ter ouvido tantas histórias do meu pai, não pude deixar de me surpreender com muitas coisas. Um monte de primos, outro de tios, que eu nunca tinha ao menos ouvido falar o nome. Lembro até que o padre que fez a minha primeira comunhão era meu primo. Uma loucura.
Depois com o passar do tempo, nós fomos crescendo, minhas irmãs começaram a trabalhar e as viagens para lá começaram a ser dividadas, metade da família ia, a outra ficava tomando conta da casa, da escola dos mais novos etc. Sempre fomos criados com muitas responsabilidades.
Quando eu tinha 15 anos meu pai finalmente e, para o meu total desespero, conseguiu realizar seu grande sonho, voltar a morar em Altinho. E eu, sem a mínima vontade tive que ir junto, ainda não era maior de idade e tinha que seguir meus pais.
Foram dias de muita tristeza para mim, deixar todos os meus amigos, escola, bairro, minha vida aqui para ir pra uma cidade totalmente diferente. Morei lá dois anos e foi nesse período que eu pude absorver mais da cultura nordestina e constatar algumas coisas. Primeiro, eles realmente são pessoas muitas fortes, homens e mulheres, acredito que pela vida dura e difícil que muitos levam, o sol que castiga quase sem tréguas, mas mesmo assim são pessoas alegres e risonhas. Como meus pais.
Só que descobrir outras coisas também, a grande maioria dos valores que meu pai havia passado para nós não batiam muito com os valores que encontrei por lá. Um lugar onde o machismo impera, onde os homens não nutrem praticamente nenhum respeito pelas suas mulheres e essas diante das difíceis circuntâncias têm o casamento como a única opção de vida.
Lá ouvi e vi casos de homens casados com 1 e as vezes 2 mulheres fora do casamento. Cada dia dormindo na casa de uma e a mulher, claro, não pode falar nada senão é largada com os filhos sem nenhum remorço. Homens noivos de uma e namorando outra. Muitos casos beiram a baixaria e não têm qualquer escrúpulo.
E comecei a me questionar da onde meu pai tirou todos aqueles valores? Onde ele aprendeu essas atitudes? Talvez porque ele também tenha sido abandonado junto com a minha vó e alguns irmãos pelo o meu avô assim, sem mais nem menos, claro o motivo: outra mulher. Ele passou muita, mais muita fome. Ele nos conta que muitas vezes não tinha nem um punhado de farinha para comer antes de dormir. E que muitas vezes era só isso que tinha: um pouco de farinha e um copo de água antes de ir prá cama. Minha avó deu uma das filhas para um casal de fazendeiros que já a tratavam como filha e quando viram minha avó naquela situação pediram para tomar conta da menina e ela se foi. Meu pai começou a trabalhar muito cedo, com 5 anos já se virava para arrumar o que comer. Ajudava muito minha avó, principalmente depois que conseguiu estruturar sua vida sempre mantinha muitos cuidados com ela mesmo distante. Deu uma casinha simples mais digna para ela morar e sempre mandava ajuda para seu sustento.
Acredito que por ter passado por todo esse sofrimento, ele nunca imaginou fazer os filhos passarem pelo o mesmo. Sempre, sempre nos garantiu o suficiente para nosso desenvolvimento, sempre estimulou nossos estudos, sempre nos ensinou a sermos responsáveis por aquilo que fazemos. E com certeza pela fome que passou um dia na nossa casa a despensa sempre tinha várias caixas, uma de óleo, outra de Nescafé, outra de arroz, feijão, açucar etc.
E a recriminação era certa para quem deixasse comida no prato. Ele ficava indgnado. Até hoje ele faz uma prece em silêncio após cada refeição. E quando ouvia a gente reclamando de alguma comida ele falava: é porque vocês não têm fome, se tivessem comeriam até pedra fervida na água.
E hoje, com essa conciência que eu tenho só tenho que agradecer pelo pai que tenho, pelos seus valores e pela sua conduta. Por isso que é muito difícil eu entender algumas coisas, algumas situações, pois são coisas que eu não via dentro da minha casa e não consigo enxergá-las como normais.
Agora somos nós que vamos visitá-los em nossas férias, e em uma delas fomos conhecer a Paraíba. Meu cunhado logo fez amizade com os donos de uma barraquinha de lanches e sempre iámos lanchar lá. Eram três homens que se revesavam no atendimento, realmente todos simpáticos, alegres e conversadores. O rádio sempre estava ligado e me lembro que um dia comecei a prestar atenção na música que tocava e não acreditei no que estava ouvindo. Torci para que os demais da mesa, meu cunhado, minha irmã e meus sobrinhos não prestassem atenção naquilo porque iria ser muito constragedor para todos. Não era uma letra maliciosa, era totalmente explícita, com palavras de baixo escalão, com direito a gemidos e não sei o que mais.
Tocando na rádio, na hora do almoço. Pensei, é isso que as crianças crescem ouvindo e é isso que eles vão ser quando crescerem, homens que só pensam em ter mulheres e mulheres que acreditam que elas estão ali para isso ou que nunca vão descobrir que elas também servem para outras coisas, e todas mais dignas do que essas.
Lá em casa, todo domingo logo após assistir o Globo Rural meu pai ligava sua radiola e colava os vinis do Luís Gonzaga no último volume, aquelas músicas, segundo meus vizinhos falavam, alegrava a rua toda aos domingos.
Nós ouviamos frases como:
"Sertão das mulher séria e dos homens trabalhodor"
"Olha lá vai passando a procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos, os homens escutando tiram chapéu"
E era nisso que acreditávamos.
Agradeço ao meu pai por um dia ele ter tido a idéia de vir morar em aqui em São Paulo, pois senão provavelmente eu e minhas irmãs teríamos o mesmo destino, ou talvez não, provavelmente meu pai não nos deixaria passar por isso. Mas hoje eu estou aqui e eles estão lá. E eu também agradeço por isso.

Esse é meu pai, dançando forró no quintal da nossa antiga casa, meados dos anos 80.
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