01 dezembro, 2013

Um desassossego

Dona Maria veio de Portugal para o Brasil ainda pequena, com os pais e os dois irmãos. Logo se instalaram no bairro da Moóca e por ali foram ficando.
Seu irmão e sua irmã ficaram jovens e decidiram ir morar e trabalhar com o tio Jorge, na cidade de São Carlos, que tinha uma padaria, e por lá ficaram.
Maria foi crescendo por ali mesmo, a vida era difícil, mas viviam na paz.
Já o seu João era gaúcho, veio sozinho para São Paulo, ainda bem jovem e por aqui foi ficando. 
Dizem que quando eles se encontraram em uma festa de quermesse foi amor a primeira vista. Mal completaram dois anos de namoro os pais de Dona Maria morreram, de um mal súbito, assim, um atrás do outro.
O plano de casamento foi acelerado e logo seu João e D.Maria eram uma família, com dois filhos.
Moravam em um daqueles cortiço da Moóca, que, ao contrário do que muitos pensam ou o nome remete, era composto por casas simples e pequenas, geralmente com famílias grandes, o que fazia do silêncio por ali "artigo" raro.
Cedinho o movimento já começava, no inicio bem tímido, mas rapidamente ia aumentando e logo o cortiço todo estava em pé, na ativa.
Os homens eram os que saiam primeiro de casa, rumavam para seus trabalhos deixando em casa suas esposas arrumando e dando café para os filhos irem para a escola.
Logo depois vinha o barulho alegre das crianças, todos com novidades para contar mesmo tendo passado apenas uma noite sem se verem. Os cachorros acompanhavam aquela algazarra até o portão grande que dava para a rua. Ali se sentavam e ficavam olhando o movimento de mais um dia.
Agora eram as esposas, com seus rádios ligados, começavam a cuidar da vida e da casa. Ali uma varria os tapetes, mais pra frente já se ouvia uma panela de pressão no fogo preparando o feijão para o almoço. Uma máquina de costura também já estava na ativa certamente uma peça de encomenda que iria ajudar o marido a manter as despesas da casa.
D.Maria acompanhava seu Jorge todos os dias até a porta, arrumava a gola da sua camisa, lhe dava um beijo e dizia: Vai com Deus. E nada de comer na rua viu? Hoje tem carne com batatas.
Seu Jorge sorria, olhava para os meninos tomando café na mesa e rumava para o Bom Retiro.
Ia cedo para garantir os mais bonitos cortes de tecido para vender na sua barraca.
Os mercadores chegavam com suas carroças carregadas e logo começa a disputa e os gritos para uma boa negociação.
Naquele dia seu Jorge está feliz e animado, era novembro e ele tinha acabado de comprar peças de tecidos lindos, e por mais difícil que fosse de acreditar, baratos. Ele sabia que logo as mulheres começariam a procurá-lo com aquele desespero típico para achar tecidos para fazerem vestidos para elas, para as filhas, para a mãe, passarem as festas de final de ano com suas roupas novas.
O vendedor, velho conhecido seu, disse-lhe na surdina: esses tecidos vêm de Campinas, meu filho vem chegando aí com mais, se o o senhor quiser esperar...
Ele ficou, lógico que queria mais!
Só que demorou. Mais do que ele tinha imaginado. 
Mas o que ele não imaginava mesmo era ficar sem aqueles tecidos, ainda mais de "cores e estampas diferentes" como o vendedor lhe esclareceu.
O problema é que o tempo passava e a fome apertava. Ele meio sem jeito olhava dos lados, mas como seguia a risca, mesmo sem saber porque, o conselho de sua esposa de "não comer na rua", nem sabia onde poderia fazer uma refeição boa e barata. Na verdade ele não sabia se podia fazer isso.
Mas por que será que a Maria fala tanto para eu não comer fora de casa? Pela a primeira vez começou a pensar.
Andando pelas ruas foi seguindo aquele cheiro bom e logo chegou na rua das lanchonetes onde todos já estavam debruçados em seus pratos de comida. Em uma esquina viu algumas pessoas ao redor de uma mulher morena que servia uns pratos simples que preparava ali mesmo, usando o colo como apoio enquanto tirava aquela comida cheirosa das suas panelas.
E seu Jorge não resistiu e se aproximou, a mulher logo sorriu e lhe disse:
- Posso montar o seu? Indicando o prato vazio que tinha nas mãos.
- Pode. Ele respondeu parecendo que embriagado pelo aroma que saia daquelas panelas e talvez um pouco pelo sorriso daquela mulher.
Se encostou ali do lado com seu prato nas mãos e em poucos minutos comeu aquela comida deliciosa e que cheirava bem.
Meio sem graça pediu mais um, que comeu com a mesma vontade que comeu o primeiro.
Quando foi pagar a mulher ela já estava arrumando as coisas para ir embora, com aquele mesmo sorriso disse: agora é hora de ir prá casa preparar a comida para amanhã!
Seu nome era Jacira e ela vinha da Bahia, e era de lá que trazia todos aqueles temperos e jeito de preparar uma refeição.
Seu Jorge pegou os tecidos prometidos pelo vendedor e voltou para casa. Agora já não tão entusiasmado com os tecidos novos mas meio que embriagado com aquele almoço.
Seria magia? Seria por isso que a Maria lhe alertava para não comer na rua? Será que ela sabia de algo que ele não sabia? Besteira, pensou e foi para casa.
Depois de mostrar os tecidos para a esposa e perguntar dos meninos disse que não queria almoçar e iria tirar um cochilo.
- Por quê? Perguntou a esposa com um sorriso desconfiado.
- Comi na rua, esses tecidos nunca que chegavam e a fome era muita. Hoje não dava para esperar. Deu-lhe um beijo na testa como quem pedia desculpas.
Enquanto o marido cochilava Maria tentava entender aquela sensação estranha no peito, uma angústia quase, que não deixava ela cuidar das coisas da casa sossegada.

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